Luciah Lopez

Sob o céu, apenas o teu olhar...

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CONVERSAS PRÁ BOI DORMIR III - NECO E VICENTINO



- Vicentinooooooooooo... Ô Vicentino!
Nenaaaá, você sabe onde se enfiou esse fiapo de gente?!
- Sei não, seu Salomão. Acho qui devi di tá lá prás banda do córgo... saíu indagorinha cás vara di pescá...

Todos os dias eram assim: meu avô perguntando pelo Vicentino sem que ninguém soubesse o seu paradeiro. As galinhas, as ovelhas, os porcos todos por alimentar e o sujeitinho saia de fino e arrumava um canto sossegado pra fumar seu cigarrinho de palha e depois tirar uma pestana. Esse maravilhosos espécime do matuto esperto, ladino até não poder mais, morava na fazenda desde que lhe nasceu o primeiro dente. Fazia parte da "família de agregados" que o meu avô prontamente ia acolhendo.
Vicentino foi criado por Nena, a cozinheira. Tornou-se rapaz e foi ficando, dava uma ajudazinha aqui outra ali, mas o que gostava mesmo era de dormir. Era um sujeito magricela, com olhos enormes e um bigodinho fino. Era preguiçoso para o trabalho, mas para comer e inventar desculpas, era diplomado. Aliás, ele nem tinha paladar, porque comia qualquer coisa que fosse agradável aos olhos. Tinha uma coração enorme e gostava muito de animais. Uma vez apareceu com um filhote de urubu dentro do chapéu dizendo que ia ficar com ele. Nena e minha avó quase surtaram.

-Vicentino!!! Suma com esse bicho nojento!
- Dona Pilar, eli é tão bunitinho. Tadin, caiu du nínhu í pra mórdi eli num morrê dí fome, eu truxí eli. Vô dá um banhu nêli, vo dá dí cume í arrumá um caxótinho pra eli drumi lá nu quartinhu mais eu.
-Você é quem sabe. Mas esse bicho come carniça, e eu não o quero aqui dentro de casa.
- Comi não, Dona Pilar. Vo insiná eli a cume só coisa limpa, a senhora vai vê. Posso ficá quêli?!
- Sim, pode ficar, mas não o quero aqui dentro.

O filhote de urubu recebeu banho com sabão de coco, foi enxugado com toalha e devidamente acomodado num “caxótinho” para tomar sol, enquanto Vicentino preparava uma “papa” de carne crua amassada com fubá bem fininho para alimentá-lo. O filhote recebeu o nome de Neco. Cresceu forte e saudável entre as galinhas, galos, patos e perus que circulavam no galinheiro, mas que não tinham a felicidade de altos e longos voos. Neco acabou por conquistar a todos. Desde o meu avô até Nena, que antes sentia náuseas quando via o filhote sendo alimentado. Vicentino ganhou um companheiro inseparável para suas horas de vadiagem pelo pasto ou para as longas horas de soneca escondido entre as sacas de café ou aconchegado num amontoado de folhas à sombra de uma árvore.
Ele se deitava e o Neco ia chegando com seu andar meio “bamboleante”  se acomodava esperando por um cafuné – era comum vê-los dormindo lado a lado enquanto o sol estava a pino!
Quando chegava a hora do almoço, Neco acordava de seus devaneios, abria as asas, dava uma boa espichada no pescoço parecendo “farejar” o cheiro da carne fresca sendo fatiada na pia da cozinha. Ele parecia sorrir quando saia aos pulos  tomando impulso até levantar vôo indo pousar no jirau junto da janela, onde Nena [antigamente] colocava as panelas de ferro depois de areadas. Se ajeitava bem e emimia sons roucos para chamar a atenção e ganhar uns pedaços de carne fresca. Ficava nessa posição olhando pela janela e depois de receber seu manjar fresco, aproveitava para alisar as penas ou simplesmente enfiava a cabeça embaixo de uma das asas e dormia.
Já o Vicentino, com aquela cara de “fuínha”, se esgueirava pela cozinha ou despensa furtando pedaços gigantescos de bolo de fubá, marmelada, queijo, biscoitos de polvilho, lingüiças defumadas e tudo que pudesse servir de alimento e quando alguém reclamava, ele sabiamente dizia: foi Neco que assartô a dispensa! -, parecia ter uma fome insaciavel e um baú cheio de desculpas esfarrapadas. Numa ocasião, meu avô recebeu a visita de um amigo médico, Dr. Messias – bonachão e muito falante que depois de uma longa conversa no gabinete do meu avô, prontificou-se a consultar todos os empregados.

Quando soube da novidade, Vicentino, que estava “quentando as mão” perto do fogão à lenha, foi saindo de mansinho com medo das supostas injeções e o Neco que não era bobo nem nada, foi junto.
Ao sentir a falta dele, meu avô pediu para Nena chamar o fujão. Foi inútil. Ele só retornou na tarde do dia seguinte após se certificar que o “Dotô” havia partido e levado com ele as "injerção". E voltou com muita dor na barriga, depois de comer bamanas, chupar canas e mais um tanto de milho assado no braseiro. Choramingando pediu um chá, e segundo o diagnóstico de Nena –“Vicentino ocê ta impaxado! Tem que tomá purgante!” – Mas o Vicentino era totalmente contra qualquer coisa chamada remédio, recusou o purgante.
Meu avô conhedor dos habitos "furtativos" do cara de fuínha, pegou o famoso vidro de “purgante”, ficou quieto pensativo e dirigiu-se à despensa. Quando voltou, nos avisou que não devíamos comer o doce de leite que estava na gamela. Era um presente para o Vicentino. Ninguém entendeu, mas obedecemos enquanto meu avô saia dando gargalhadas. No outro dia, Nena preparava o café e sentiu falta de alguns petiscos de sua despensa.  Sumiram duas lingüiças, um pão caseiro, metade de um queijo e o doce de leite com gamela e tudo. Foi logo perguntando: ocê assartô a díspensa, Vicentino?  - ele negou dizendo: -“Deve dí tê sido o Neco. Dí noite ele tava sem sono e cum muita fome. Acho quí cumeu tudo sozinhu. Êita bicho guloso, sô!”
Meu avô deu uma sonora gargalhada e disse : -“Huuuuummmmm... Sei!”
Não demorou muito e o Vicentino foi ficando meio amarelo e suando, até que não agüentando mais saiu correndo se trancando no banheiro. Ficou horas neste vai e vem enquanto meu avô dava sonoras  gargalhadas e conversando com o Neco, que tranquilamente comia o seu dejejum de carne fresca e olhava virando a cabeça para o lado parecendo rir da situação. E como dizia meu avô: “Tem gente que tem o olho maior que o estomago.”
Mas no final tudo se resolveu da melhor maneira possível e Neco e Vicentino ainda aprontaram muitas lá na fazenda...


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Luciah Lopez
Enviado por Luciah Lopez em 15/05/2008
Alterado em 01/11/2021
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